Professor de Ciências das Religiões encontra erros nas traduções bíblicas que alteram o sentido dos ensinamentos sagrados
por Daniel Amador
Nordestino de Alagoas-Grande (PB), Severino Celestino da Silva saiu de casa aos 13 anos com um pedaço de pão no bolso para procurar emprego na capital, João Pessoa. Sabia a missa decorada em latim e, por isso, conseguiu vaga para ser coroinha. Era a garantia de uma refeição por dia. Convidado pelo bispo local, foi para um seminário aprender o ofício de padre, mas foi expulso por não ter como pagar. Dormiu na rua e foi trocador de ônibus, mas nunca parou os estudos. Aos 18, passou no vestibular de medicina da Universidade Federal da Paraíba, (UFPB). Sem ter como comprar os livros, trancou a faculdade e foi para São Paulo tentar ganhar dinheiro. Trabalhou durante nove meses em uma loja de tecidos, juntou o suficiente e voltou para João Pessoa, onde trocou a faculdade de medicina pela de odontologia. Formado, deu aulas para se sustentar durante o mestrado e o doutorado em odontologia e cirurgia bucomaxilar.
Sempre interessado pelas religiões, estudou grego, hebraico e aramaico. É doutor em teologia e dá aulas de judaísmo, islamismo, cristianismo e espiritismo no curso de doutorado em Ciências das Religiões da UFPB. Identificou erros importantes de tradução e interpretação nas traduções bíblicas para o português. O estudo gerou o livro ?Analisando as Traduções Bíblicas?, da Editora Idéias. Erros como o do popular Salmo 23 e alterações deliberadas no texto que chegam a condenar outras religiões.
Ao pegar uma Bíblia para ler, posso confiar no que estou lendo?
Lamentavelmente não é confiável. Eu trabalho há 42 anos procurando a essência das mensagens bíblicas. Tenho 22 bíblias em português, além das traduções em grego, hebraico e latim e existem diferenças marcantes de uma bíblia pra outra, algumas conflitantes.
No Salmo 19, versículo 8, por exemplo, temos as seguintes traduções: "A lei do senhor é perfeita, reconforta a alma", "A lei do senhor é perfeita, refrigera a alma", "A lei do senhor é perfeita e faz a vida voltar", "A lei do senhor é perfeita, dá a vida", "O ensinamento do senhor é perfeito, dá a respiração".
No original em hebraico está escrito: "O ensinamento (ou revelação) de Deus...", Javeh é a palavra. E significa Deus e não senhor. Foram os tradutores gregos que incluíram a palavra senhor no lugar da palavra Deus. "...porque promove o retorno do espírito". E esse é só um exemplo.
Tem o salmo 23 que é belíssimo e todo mundo conhece. Ele diz: "O Senhor é meu pastor e nada me faltará."
Essa é a tradução que todo mundo conhece, mas o que o rei David disse foi "O Senhor é meu pastor e não me faltará". Ou seja, Deus não vai nos dar coisas materiais, mas o sentido correto é que Deus nos acompanha sempre. E assim vai. Do Gênese ao Apocalipse tem erros como esse.
Esses erros são apenas de tradução ou de interpretação também?
Ambos. Quando eu finalizo um trabalho, peço o crivo de um especialista em hebraico para verificar se minha tradução não foi equivocada e, dentro da lingüística hebraica, faço as correções necessárias.
Mas a maioria da população não conhece o hebraico. Existe alguma tradução mais próxima da original?
Sim. Existe uma bíblia chamada "A Bíblia de Jerusalém", que é uma tradução feita por católicos e protestantes. Ela, em quase sua totalidade é fiel ao texto original. E é interessante porque contém todos os livros dos três tipos de bíblias conhecidas: a judaica, a católica e a protestante, ou seja, ela é uma bíblia, além de melhor traduzida, mais completa.
Existe algum desvirtuamento proposital nas traduções, algo que é uma modificação e não um erro de interpretação?
Infelizmente sim. A maioria das religiões atuais adapta suas traduções para suas crenças. A mais surpreendente para mim foi a supressão do que os judeus chamam de transmigração das almas. O profeta Malachias disse que Elias haveria de voltar. Jesus, por sua vez, disse que dentre os filhos de mulher (a decendência religiosa para os judeus vem pela mãe, então a expressão filhos de mulher significa judeus) não houve nenhum maior que João e que ele era o Elias que haveria de voltar. A maioria das traduções modifica essa passagem.
No Gênese, a tradução original é "E Deus criou o Homem...", dando o sentido de humanidade e não um homem que antecedeu uma mulher. E continua com "...e lhe deu um sopro de vidas" no plural, porque a palavra haim no hebraico não possui singular. É a mesma usada por David no salmo 23 quando diz "Bondade e benevolência nos seguirão todos os dias das minhas vidas" com o mesmo haim, no plural. Então, o princípio de que temos várias vidas, como os judeus acreditam, está textualmente na Bíblia.
Mas em muitas religiões essa é uma idéia atribuída a Satanás.
Interessante falar nisso. Em hebraico a palavra satã significa tão somente alguém que se opõe a uma idéia. Nada de figuras de chifres e rabos, apenas opositores. Se sou flamenguista e você vascaíno, e os times se enfrentam, somos o satã um do outro naquele momento.
E Lúcifer?
Pura fantasia. No livro de Daniel 14:12 é onde está a profecia da queda do rei Nabucodonosor. Lá está escrito que a estrela luz filha da manhã cairá, e a partir daí surgiu a fantasia ou a lenda de que era um anjo do céu que se rebelou contra Deus.
Mudando um pouco de assunto. O que fazer nos dias de hoje? Devemos, ao ler a Bíblia, analisar os textos literalmente e seguir, para os que crêem, literalmente?
De forma alguma. É preciso, ao ler o texto bíblico, avaliar três pontos básicos. Quando, para quem e por que foi escrito. É preciso contextualizar, entender a história daquele povo e o que vivia naquele momento. Mas isso não diminui os ensinamentos, há o que os judeus chamam de sentido midrástico, que é contar uma história e nela conter os maiores ensinamentos necessários, e que atravessa os tempos, pois diz respeito à humanidade. É o que Jesus fazia.
Esses equívocos de tradução e interpretação influenciaram na evolução da humanidade? Atrapalham?
O mais importante é que a Bíblia é um livro de conduta, um livro de moral. Não condena ninguém, nem nenhum grupo tal ou qual. Então mesmo alguns desvios causados pela interpretação literal são menos importantes que o ensinamento moral. E o principal ensinamento, a meu ver, é que podemos amar uns aos outros apesar das diferenças.
E qual o caminho?
A Torá e o Talmud dizem que o universo se sustenta em três bases. O ensinamento divino (amor), a justiça e a paz. Se o mundo buscasse esses três conceitos a gente iria se entender perfeitamente. Amor, justiça e paz. Precisa de religião pra isso?
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